Solilóquios de um Pecador: meditação poética e confessional de um homem ridículo (obra autoral)

Em um discurso carregado de intensidade e controvérsia, um orador solitário se levanta como o crítico mais feroz da humanidade, expondo a corrupção e a decadência moral de todos. Sua fala é ao mesmo tempo uma denúncia e uma confissão velada, ecoando a experiência de alguém que parece estar profundamente ciente das misérias que condena. Com um tom mordaz e uma aparente autoridade, ele desfia reflexões sobre a vaidade das tentativas humanas de redenção, sugerindo que a salvação não está ao alcance dos homens por seus próprios méritos, mas aponta para um único caminho verdadeiro, ainda que desconcertante para seus ouvintes.
Aquietai-vos, senhores, pois é o pecador quem vos dirige a palavra!
Dez a doze xícaras de chá, senhores — repito —, míseras xícaras de chá. Eis no que todos nós, um a um, seremos reduzidos, cedo ou tarde, quando consumidos pela impiedosa chama. Chama esta que, mesmo pesarosa, arde incansável, fruto do decreto irrevogável que jamais se curva às leis da natureza. Um fogo que atravessa tempos e eras, insensível ao que possuímos ou ao que julgamos ser. Dos mais jovens aos mais longevos; sejam eles perversos ou puros, ímpios ou inofensivos, amores ou desamores, inimigos ou amigos. Quando chegar a hora daquela que foi decretada — ainda que prorrogada pelo Legislador —, o que era distante tornar-se-á espelho diante dos teus olhos. E o que julgavas etéreo desvelar-se-á, quando vires teu próprio sangue, rubro e espesso, gotejar de suas entranhas. Nesse momento, reconhecerás que toda a pompa não passava de lama, que os prazeres efêmeros eram apenas tragédias disfarçadas. O que fizeste ou deixaste de fazer já não será mais do que rabiscos em rochas frias, nas profundezas de uma caverna pouco iluminada. Títulos, honrarias, epítetos — tudo se reduzirá a ecos dissonantes, meros ruídos numa melodia desafinada.
E então perceberás que tudo o que viveste — o que prometeste realizar, o que sonhaste e descartaste, o que provaste e rejeitaste, amaste e odiaste —, tudo isso tornar-se-á história. História até quando subsistir na memória, enquanto houver quem a narre, sob o olhar crítico dos juízes de valores, e assim será, até que o último deles – juntamente - seja consumido pelas chamas e reduzido às mesmas cinzas que os seus condenados, não mais do que dez a doze xícaras de chá.
Senhores, eis o homem! Que escolhas ele fez? Que caminhos trilhou? Pois bem, isso é história, e cada um dará a sua versão. Um dirá "justo", outro bradará "iníquo"; um o chamará de amigo, e outro de traidor. Mas, no fim, são apenas histórias, senhores. Eis o homem..., quando a vida esvair-se de seu olhar e a alma escapar em seu último suspiro, será reduzido, inevitavelmente, a dez ou doze xícaras de chá, pelas mesmas chamas que a todos consomem, e a si mesmo dirá:
"Ontem eu morri. Ou será que foi sábado?
Ontem eu fui dado como morto. Hoje sou cadáver. A cada minuto meu corpo definha para que, dentro de alguns instantes, seja posto em um caixão lúgubre e então, dentro de alguns dias, que nada mais são do que horas de tortura e agonia, sirva de banquete aos vermes que me dilaceram a face. Não digo isso esperando que se apiedem de mim - eu não preciso de comiseração pelas minhas misérias, as quais carrego no peito como insígnia de guerra - o corpo já está posto sobre a mesa, não há mais nada a ser feito. Eis o cadáver de quem fui. Eis ali, o homem morto que agora sou. Ou que sempre fui. Ou que há mui quis ser.
Isso não importa agora, ou melhor, não poucas vezes era - e ainda sou - atormentado pelos fantasmas de tudo aquilo que deixei de ser e o que poderia ser, e que pensava ser, ou que queria, ou que compreendia ser... e que nunca serei. Pois bem, não importa, isso não importa, pois todos esses seres e poderes que um dia arroguei ser não passam de paródias de mim mesmo. encarnando meus ideais difusos em uma trágica comédia humana onde eu sou o meu próprio público, crítico e ator. Sou cobaia das minhas próprias teorias e a consumação das minhas ridículas ideias e filosofias, ao passo que sofro repetidas tragédias justificando-me às custas de vãs elucubrações discorridas em prosa, em pena, em carta, em poesia, em arte... em vaidades, inutilmente." – e dirá:
"pois bem, que isso importa agora? Ontem eu morri e hoje o meu cadáver está posto à mesa. Quem o removerá?" – E torno a dizer: quem o removerá?
Pois bem, senhores...de quem é este cadáver, senão, de um assassínio? É isso mesmo que vocês ouviram, senhores: de quem é o corpo, senão, daquele que se autodestrói? Vedes, com clareza e enxergue de uma vez a autodestruição inerente ao homem. Ouça a denúncia de que o corpo que jaz sobre a mesa pertence ao próprio algoz que o relegou à inexistência. Ouça a voz que brada:
"Assassínio, assassínio!
Foge a besta depravada, Esgueirando-se pelos arbustos da noite sombria. Vede, o corpo estirado, a vida abandonada, O sangue jorrando na calçada fria. O que é isso, o que se revela ao olhar? É uma besta feroz? Um demônio assombrado? Não, é o Humanismo, que vem a personificar, A sombra do homem, num gesto malfadado. Humanidade, que em seu próprio ser se consome, Tornou-se a besta que outrora temia, Assassínio na noite, sem rosto, sem nome. Humanismo que o sangue e a culpa sacia, Mostra o que é o homem, em seu cruel renome, Assassino de si, na fria noite vazia."
Ó, morte de si pelas mãos do próprio eu! Cinzas do eu depositados sobre as xícaras de quem se é! Nu de si, nu-de-si! Ouça e veja de uma vez por todas, pois não há mais tempo para o tempo! Pois o tempo é um agente ativo e irredutível da própria morte. Enxergue de uma vez, que é o tempo, senão, a sentença de morte dilatada? Enquanto houver vida mortal, haverá tempo e a realidade da efemeridade das coisas, caso contrário, o tempo deixará de existir, pois a sua existência consiste em marcar o que se é e o que se faz entre a vida e a morte; isto é: o tempo é a morte dos momentos, e quando o último ser vivo expirar o seu último momento, Deus vingará. Compreende?
Ouça o poeta, que também é o seu profeta:
"O tempo existe em função do Grande Dia, o Dia em que o Senhor, Justo Juiz, julgará toda humanidade. O pecado trouxe a morte e a agonia, Mas Deus, em Sua graça, dá-nos a eternidade. Não vem de imediato a morte que no Éden fora decretada, Pois o próprio Deus, em compaixão, o tempo estende. A Sua misericórdia, então, dilatada, Permite que o propósito final se compreenda. Na cruz, o Filho executou o plano eterno, Redimiu um povo em meio à condenação, Desfez o poder do pecado, vil e interno, Trazendo à luz a promessa da salvação. O tempo corre até o Dia derradeiro, Quando a morte cederá à vida imortal. Os eleitos viverão no Reino verdadeiro, E os ímpios sofrerão no abismo final."
O tempo, meu caro, é a misericórdia de Deus caminho a passos largos até o Dia do Senhor. Dia de Terror, Dia de Glória, Dia da Vingança, Dia do Consolo, Dia da Reparação, Dia da Redenção. Este será o Dia em que todos, sem distinção, serão postos à prova e às claras. Quem não viu a nudez da própria alma em vida, prepare-se, que o verá neste Dia. Prepara-te, então, para isto: vedes a sua própria nudez agora e suporte este vexame, ou então prepara-te para suportar o peso da Ira Santa de um Deus ofendido e humilhado desde o princípio da criação.
Mas, senhores, deixe-me facilitar o vosso entendimento. Alguém pode estar se perguntando: "Ora, mas que nudez d'alma se fala?". Ouça com mui atenção, meu caro:
— Ainda que fosse devolvido ao Éden, Com todos os problemas solucionados, e de tudo tivesse o necessário sustento, o homem, zeloso por sua autonomia e liberdade, Se rebelaria contra Deus, e, se pudesse, o mataria. Pois o obstáculo não está nas coisas deste mundo, nem na falta daquilo que julgamos ser útil para a virtude, mas está intrínseco ao homem, em seu íntimo mais agudo. mil chances ao homem deem, e ao Éden devolva-o, devolva e o verá fracassar mil e uma vezes, sem um santo destino. Visto que não há Éden que assegure Adão de si mesmo, nem Jardim que não possua o fruto do conhecimento, nem fruto que não possua a sua ruidosa serpente, não há outro destino, senão este, que fora decretado. Se não for o Filho do Homem, o Segundo de Seu Nome, para sangrar-se e morrer-se, jamais saberíamos que se Ele desse a chance nós o mataríamos, invadiríamos o Éden, Saquearíamos os céus e destruiríamos seu Trono, tudo isso em nome da autonomia e liberdade humana. Portanto, meu caro, independente de quem se é e d'onde está, há um mal inerente à essa alma condenada a ser livre e escrava de sua própria autonomia. Por isso, sê nu de si e entenda que o problema não reside em seu exterior, meu caro, mas na sua própria natureza humana, demasiada humana, que se farta e se regala do seu enfado e que se move e se orienta por seus tão controversos desejos. Para alguém assim, feito eu e você, é inevitável não pecar – e em um mundo governado por gente assim, o pecado é não pecar; e toda forma de abnegação, virtude e santidade é repudiada como sendo oriunda das profundezas do Inferno. Assim, os valores são invertidos e aquilo que era pra ser amado, torna-se objeto de ódio, e o que era para ser amado, é relegado a mais profunda perseguição.
— Ouça o que o pobre que decidiu ser nu de si uma vez declarou:
— Sou uma paródia das minhas próprias ideias. Encarno as minhas misérias como se estivesse vivendo, de forma perversa, a essência de uma filosofia que eu mesmo distorci ao longo do tempo. O que eu penso ser uma análise profunda da minha própria existência é, na verdade, uma repetição infindável de angústias e contradições que me amarram ao vazio. Tornei-me um experimento de mim mesmo — uma espécie de laboratório vivo, onde eu, simultaneamente, sou o sujeito e o objeto de estudo. Faço da minha dor um ciclo vicioso, tentando criar, com base nas minhas próprias conclusões falhas, um antídoto que nunca funciona. No fundo, sei que estou apenas mascarando a verdade: o que realmente busco não é a cura, mas a confirmação de que estou irremediavelmente perdido. Cada tentativa de superar essa miséria acaba por me arrastar mais fundo nela. Acredito que estou no controle, que sou capaz de analisar friamente meu estado e encontrar a solução. Mas, ironicamente, quanto mais tento me libertar, mais preso fico nos erros que eu mesmo cometo. E é nessa sucessão de tentativas frustradas que me amargo a cada dia, percebendo, ainda que tardiamente, que sou prisioneiro de mim mesmo e das minhas ideias malformadas. Sou a caricatura de uma filosofia que nunca fez sentido, mas que, de alguma forma, continuo a seguir. O antídoto que fabrico é sempre o veneno que me consome."
Quem o livrará das armadilhas do próprio Eu? Quem reduzirá suas vãs filosofias ao esquecimento? Quem poderá o Salvar de si mesmo? Este mesmo pobre, também clamou em alta voz, dizendo:
"Silencio, ó minh'alma! O Filho do Homem te fala, Escuta-O em profundo silêncio. Ele, o Homem das Dores, profere seu sermão na angústia, E sua dor se converte em boa-nova a ti. Se atentares bem, verás nos olhos de Cristo, Que Ele também te vê. Quando sofres, alma minha, sofres com Ele. Então, mantém-te firme, não te agites! O Cordeiro imolado não desesperou, Mas resignado, rendeu-se; Carregou pecados que não eram Seus, Até a morte, e morte de cruz! Silencia, alma! Escuta os cravos que transpassam, Sente os espinhos, o sangue que se verte, E em tudo isso, encontra o teu regozijo. Ó Homem das Dores, Filho do Homem, meu Cristo, Faz brotar em mim a alegria da Tua Salvação! Faz jorrar, ó Deus, A alegria que nasce da cruz. Reveste-me de Ti, para que eu não viva mais só; Mas que, contigo, eu seja Mártir e homem de dores, Alegre e compassivo, crucificado e redimido; Teu servo, ó Deus, servo dos cravos de Cristo!"
Continua...