O Homem do Propiciatório - Um conto de João Matheus

24/01/2025

De Pavel Ivanovich a Elizaveta Andreyevna

"Prezada irmã em Cristo,

Permita-me desde já pedir perdão pela necessidade de escrever-lhe sobre um assunto tão delicado, mas sinto que devo fazê-lo. É com o coração contrito que me dirijo a vós, ciente de que vosso tempo é precioso e de que minhas palavras podem causar desconforto. Não obstante, a necessidade impera, e rogo que me concedais vossa paciência.

Como já mencionei anteriormente, honrando a palavra dada, comprometerei o pagamento integral dos prejuízos causados pelo incidente, para o qual já iniciei esforços. Venderei meu relógio de bolso, peça de grande estima, e os irmãos de nossa igreja organizarão um jantar beneficente para me auxiliar com os custos. Contudo, devo admitir que enfrento uma pressão considerável por parte de meus parentes e conhecidos para que leve o caso às autoridades judiciais. Não pretendo fazê-lo, pois reconheço que o erro foi mútuo. A verdade é que deveria ter sido mais cauteloso e indicado minha intenção com o devido sinal, mas prefiro arcar com o prejuízo a buscar reparação pelos meios que o mundo considera apropriados.

Como cristãos, somos chamados a agir em amor uns para com os outros, e não desejo de forma alguma causar-lhe qualquer tipo de aflição. Apenas gostaria de saber se seria possível que os irmãos de vossa igreja também se mobilizassem para arrecadar alguma ajuda em meu favor. Devo salientar, no entanto, que alguns testemunhos e relatos do ocorrido apontam para um equívoco de ambas as partes. Não desejo usar tais evidências para evitar minha responsabilidade; quero apenas apresentar a verdade dos fatos para que possais ponderar sobre minha posição. Caso, após análise, seja decidido que o erro foi inteiramente meu, aceito resignadamente minha obrigação de pagar tudo, mantendo minha palavra.

Mais uma vez, peço perdão por trazer tal assunto à tona. Se dispusesse dos recursos necessários, resolveria tudo sem hesitar. Contudo, como já levaste o veículo a reparos de forma tão célere, não tive oportunidade de preparar-me adequadamente. Além disso, a lei me concede o direito de solicitar três orçamentos distintos para o conserto, mas prefiro abdicar desse direito para evitar maior incômodo para vós e vossa família.

Que Deus, em Sua infinita graça, nos guie e ilumine nesta situação.

Atenciosamente,

Pavel Ivanovich"

Diálogo entre Pavel Ivanovich e Mikhail Petrovich, seu amigo

Pavel baixou a pena e suspirou profundamente, como se a escrita daquela carta lhe tivesse sido extraída não apenas pensamentos, mas também um fragmento de sua própria alma. Estava sentado à mesa, diante de uma lamparina cujas chamas vacilavam, lançando sombras que simplesmente dançavam com sua inquietação. O ar da sala estava impregnado de um frio cortante, que fazia o brilho da lamparina parecer ainda mais tênue. O braço esquerdo se apoiava sobre o colo, envolto em ataduras limpas, consequência de uma recente cirurgia na mão, que ainda o forçava ao descanso. Não muito longe, Mikhail Petrovich, seu confidente e amigo de longa data, observava-o com olhos perscrutadores, como quem buscava alcançar as profundezas daquele espírito atormentado.

— O mestre da oficina disse que podemos acertar o pagamento até segunda-feira — disse Pavel, exalando um suspiro pesado. — Mas por que, Mikhail, nossos irmãos são tão egoístas?

Mikhail, sempre comedido, inclinou-se ligeiramente para frente, apoiando as mãos sobre sua bengala de madeira entalhada, enquanto respondia com gravidade:

— Pavel, precisarás tomar uma posição contra essa mulher.

— Não compreendo o que queres dizer — replicou Pavel, franzindo o cenho.

— Refiro-me à tua condescendência, Pavel. Estás aceitando tudo calado, como se fosses culpado.

— Mas, Mikhail, a questão não é assim tão simples…

— Sei que não é simples — interrompeu Mikhail, erguendo o olhar penetrante. — Mas na mente dela, tua submissão é o mesmo que culpa. Não há como escapar disso, Pavel. Precisarás enfrentá-la.

— Ah, meu amigo, não é tão fácil quanto dizes…

— Fácil, certamente não é. Mas não há para onde correr. Confrontá-la não te torna menos cristão; ao contrário, estarás apenas sendo justo. Essa mulher é ardilosa, Pavel, e está se aproveitando de tua bondade.

Pavel levou a mão à fronte, visivelmente angustiado.

— Meu Deus… Mais uma vez brado: que Cristo volte logo!

— Sim, Pavel — assentiu Mikhail, com um tom sério.

— Não suporto mais este mundo — continuou Pavel, como se falasse consigo mesmo, voltando o rosto para a janela. — Não suporto mais este corpo de morte…

— Contudo, o seu lamento decorre de uma situação pífia como essa, Pavel — replicou Mikhail, com firmeza. — Terás de suportar o que a vida te impõe, por mais penoso que seja, afinal, você ainda está neste mundo.

— Pois é…

— Essa é a angústia de nossa existência. — continuou Mikhail.

— Tens razão — respondeu Pavel, com os olhos baixos. — Mas o que mais me dói é que essa provação vem de nossos próprios irmãos…

— Irmãos, Pavel? — questionou Mikhail, erguendo as sobrancelhas. — Talvez no nome apenas. Pergunto-me se realmente ouviram a Palavra da Verdade.

— Talvez tenham ouvido, mas estão em um estado de fé tão raso que é como se não tivessem ouvido coisa alguma.

— Concordo contigo — disse Mikhail, recostando-se na cadeira e esboçando um leve sorriso. — Contudo, lembro-me de São Paulo. Muitas vezes, ele provocava seus ouvintes instigando-os a refletir se realmente haviam renascido.

— Sim, entendo o que queres dizer — respondeu Pavel, em tom reflexivo.

— Pois bem — prosseguiu Mikhail. — Recomendo-te agir com prudência. Envia teus criados para verificarem o estado da carruagem. Poderemos buscar outros artesãos ou mecânicos, se necessário.

Pavel levantou os olhos, parecendo hesitar, e então disse:

— Mikhail, posso fazer-te uma pergunta? e espero que sejas sincero…

— Claro, Pavel.

— Que pensas sobre a minha carta?

Mikhail sorriu de modo contido, como quem reflete antes de responder:

— Pavel, essa situação é uma lição para todos nós. Mas espero que, ao final disso tudo, tenhas perdido um pouco desse otimismo ingênuo que tens acerca das pessoas…

Mikhail deixou escapar uma breve risada, enquanto concluía:

— Não me leves a mal, amigo.

— Pavel, você conhece o peso de uma alma dividida? — começou Mikhail, a voz compartilhada de uma melancolia que parecia reverberar em cada palavra. — O dilema de agir em conformidade com a verdade, mas, ao mesmo tempo, ceder a uma devoção absurda que só me fere mais? Percebo-me, não apenas como um homem carregado de remorsos, mas como um pecador tentando expiar a si mesmo. E por ser íntimo desta percepção angustiante, sinto-me seguro em dizer-lhe que é exatamente isso que reconheço em sua carta. Tentas ser Messias, mas acaba por ser um Cristo em contradição, um bode expiatório que, embora se ofereça para ser a vítima, espera misericórdia de quem de fato deveria ser redimido por sua própria culpa. Ora, tua perplexidade reside nisto: queres ser como Cristo, mas tens medo do prejuízo. Ou, pior ainda, espera misericórdia daqueles por quem o Cristo precisa ser morto.

— Tu falas como um homem que se viu à beira da tragédia, Mikhail— respondeu Pavel, seus olhos escuros fixos no amigo, como se visse através dele, penetrando sua agonia interna. Mikhail continuou como se nem tivesse ouvido — Mas o que te assola não é a injustiça que o mundo te impõe, mas sim a tua própria luta interna contra ela. É como se, no fim, a verdadeira angústia fosse não tanto o que se fizesse aos outros, mas o que se fizesse a si mesmo ao tentar ser justo em um mundo que não sabe o que é a justiça.

— Talvez seja…— murmurou Pavel, deixando suas palavras pairarem no ar. — Estou preso numa armadilha tecida por minhas próprias mãos, buscando redenção enquanto, paradoxalmente, sou consumido pela ira que este mundo me inflige. Digo isso porque reconheço a minha imprudência diante da situação, pois negar isso seria o mesmo que negar a realidade das coisas; contudo, meu caro amigo, fosse outra pessoa, um moribumdo desprovido de fé qualquer envolvido nesse acidente comigo, ou num acidente pior, antes fosse mais do que uma mão quebrada, antes fosse… mas afirmo a você, eu não quero e não posso aceitar que meus irmãos, aqueles com quem compartilho a mesma fé, sejam os mesmos que me causam essa agonia. Como bem disse, se fosse um ímpio, a dor seria mais suportável. Mas, sendo de minha própria casa, a angústia é indescritível. Sinto-me traído, Mikhail, sinto-me no meu Getsêmani… isso é mais difícil de carregar.

— Tenha calma, estás começando a delirar. — ponderou Mikhail, compreensivo, mas firme em sua colocação. — Tu te perdes no jogo de querer ser o bom, o justo, o que aceita todo o fardo, o que se põe sobre o propiciatório. Mas, Pavel, há momentos em que a retenção é uma forma de escravidão, e você não deveria temer, nem se deixe arrastar pela ilusão de que os outros devem ser salvos pela sua dor, ou melhor dizendo, prejuízo.

— Eu não quero salvar ninguém, Mikhail! — exclamou Pavel, levantando-se, a voz tensa, como se as palavras que saíram de sua boca pudessem de algum modo desfazer a trama que o envolvia. — Não tenho a vaidade de achar que posso salvar alguém. Mas este fardo… Esta cegueira que os outros têm para com a verdade… não posso permitir que continuem a me fazer isso, sem que eu me defenda. Contudo, conheço-me muito bem e sei que não o farei.

— Tu és um homem de boa consciência, Pavel, mas também é um homem aflito — disse Mikhail, sem tirar os olhos do amigo. — Os mestres falam sobre agir com humildade, de não buscar vingança, de perdoar. E tu, na tua pureza, parece querer carregar o peso do mundo nas tuas costas. Mas, amigo, não te esqueças de que, às vezes, é necessário abrir os olhos para a insuficiência da nossa busca pela verdadeira justiça, e que, no fim, não somos tão capazes assim de fazer sacrifícios e entregas a todo momento, pois como eu disse, você ainda está neste mundo, e querendo ou não, vai ter que jogar o jogo deles.

— A verdadeira justiça… — murmurou Pavel, perdido em seus próprios pensamentos. — Mas será que o mundo conhecerá alguma vez a verdadeira justiça? Eu tenho que ele apenas cultive a tristeza e chame-a de virtude. O que farei, Mikhail? Como posso manter minha palavra e, ao mesmo tempo, não sucumbir à injustiça? Como posso ser o cordeiro, se sou, ao mesmo tempo, o leão, pronto para atacar?

— Você não precisa ser nem um nem outro, Pavel. Talvez você esteja dando saltos lógicos despassados— respondeu Mikhail com serenidade. — A justiça virá, mas não da maneira que você imagina. Queres fazer um acidente, um acontecimento desordenado e imprevisto caber em um ideal neotestamentário. Quando se trata dos nossos dias, não espere corações contritos e inclinados aos preceitos idílicos dos apóstolos, mas tão somente zombaria e escárnio. Não me assustaria caso encontrasse um indivíduo que se diz cristão ridicularizando a sua carta. Meu caro amigo, eu posso ouvir as risadas malfadadas dos seus opositores.

Pavel, em silêncio, contemplou o amigo com um olhar grave. Ele sabia que havia verdade nas palavras de Mikhail, ainda que lhe custasse aceitá-las. Aquelas palavras ecoariam em sua alma nos dias vindouros, enquanto ele caminhava em meio às tormentas que o destino lhe reservara.

— Apenas desejo decidir conforme aquilo em que cria ser o melhor… Pois, no final, temo tornar-me como os fariseus… — murmurou Pavel, rompendo o silêncio com um olhar sombrio. — Não hesito em assumir os meus erros; contudo, confesso-me aflito por aceitar sair como prejudicado, enquanto ela permanece ilesa. E, embora o tenha feito, a minha resignação… não, a minha omissão é o verdadeiro mal que me consome e a razão da minha inquietação.

— Meu caro amigo, independentemente da tua exigência em cumprir a Vontade Divina, sabemos, por certo, que a graça do Altíssimo prevalecerá. E, se o autor de Hebreus diz a verdade, o sangue de Cristo purificará toda a consciência das obras mortas. — respondeu Mikhail, com um sorriso discreto, voltando os olhos para além da janela.

— Assim espero… desde que haja, em mim, verdadeira confiança. — concluiu Pavel, fitando também a paisagem enevoada do lado de fora.

— Isso me trouxe à memória um texto das Escrituras. — acrescentou Mikhail, tirando da bolsa um exemplar da Bíblia. — "De todos os lados somos firmes, mas não desanimados; ficamos perplexos, mas não desesperados; somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos. Levamos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também se manifeste em nosso corpo." II Coríntios, capítulo quatro, versos oito ao dez.

— Aí está! — exclamou Pavel, como se as palavras lhe tivessem iluminado o espírito. — Bendito seja Deus pela tua vida, meu bom amigo!

— E eu louvo a Deus pela tua, Pavel! — respondeu Mikhail, visivelmente emocionado. — Reconheço, contudo, que usei palavras duras contra ti. Rogo que me perdoe por tal aspereza. Saiba, porém, que admiro profundamente a sua postura. Aquilo que muitos tomam por objeto de escândalo ou desdém é justamente o que tanto venero em sua pessoa. Pois, ao fim, ainda que você considere ridículo, é, acima de tudo, um homem que pauta sua conduta pela Vontade de Deus. E não há maior honra neste mundo do que suportar o opróbrio em nome d'Ele.

As palavras de Mikhail tocaram Pavel, e ambos se concentraram em conversar até que a noite envolvesse o horizonte. O frio tornou-se mais severo, e os primeiros flocos de neve começaram a cair.

Mikhail, ajeitando o sobretudo para partir, preparava-se para despedir-se quando Pavel, com decisão em sua voz, declarou:

— Estou decidido. Enviarei uma carta.

— Naturalmente que o fará! — respondeu Mikhail, esboçando um sorriso afável ao amigo, que ele retribuiu com um olhar sereno e pleno de calor humano.

E assim se despediram, sob o manto da neve que serenamente cobria a terra.

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